Dica de filme: Coerência (Coherence) - O que há de quântico em um jantar entre amigos?
Posso mostrar-lhe um livro sagrado que talvez lhe interesse…
Abri-o ao acaso…
– Olhe-a bem. Nunca mais a verá…
– Isto não pode ser…
– Não pode ser, mas é. O número de páginas deste livro é exatamente infinito. Nenhuma é a primeira; nenhuma, a última.
O Livro de Areia – Jorge Luis Borges
Esta resenha NÃO é recomendável para quem quer realmente aproveitar o mistério e toda a maravilha deste filme, um dos melhores que já assisti, pois qualquer coisa, por mínima que seja, irá estragar grande parte do suspense da primeira metade do filme. Então talvez seja recomendável lê-la DEPOIS de ver o filme, caso tenha ficado totalmente perdido e não entendido nada, pois o filme é relativamente complexo e é preciso alguns conhecimentos prévios para entendê-lo. Logo, recomendo que leiam somente até o aviso, onde irei tratar apenas de alguns detalhes técnicos do filme, sem mencionar nada do roteiro.
Coherence é um filme que não apresenta qualquer efeito especial, tem uma trilha sonora mínima e se passa unicamente dentro de uma casa onde oito amigos se reúnem para uma espécie de jantar de confraternização. Todos os atores são desconhecidos das grandes produções, porém fazem um trabalho exemplar, afinal o filme é praticamente um teatro filmado e depende totalmente de suas atuações. Coherence segue uma linha muito semelhante a Primer, de 2004, filme de ficção científica que se passa quase que inteiramente em uma garagem. Não é necessário o gasto de milhões em efeitos especiais se o filme possui um roteiro genial.
Os cortes abruptos e a filmagem com câmera de mão podem parecer um pouco desconfortáveis no começo, mas cumprem bem o papel para a atmosfera do filme. A casa onde a ação se passa teve um cuidado primoroso na iluminação que mantém tudo claro nas cenas mais tranquilas e alegres, escurecendo imperceptivelmente nas cenas mais dramáticas e misteriosas, um dos melhores trabalhos de iluminação natural que vi nos filmes mais recentes, quase inteiramente feito com lâmpadas, abajures, lanternas, velas, etc.
Sem mais demora, vamos à parte mais interessante do filme, seu roteiro. Tudo o que vou apresentar brevemente aqui é dito no próprio filme, mas de modo rápido e resumido, então é difícil, para um leigo no assunto, assimilar de primeira uma quantidade razoável de informações sobre temas complicados. Portanto, quem não quiser MUITOS SPOILERS, sugiro que pare por aqui.
Vamos começar pela física quântica e o gato de Schrodinger. Talvez um vídeo deixe as coisas mais claras ou mais confusas:
Ao invés do gato, eu prefiro a analogia do restaurante. Você vai jantar em um restaurante daqueles extremamente caros e sofisticados e recebe o menu. Decide comer alguma carne e repara que no cardápio tem carne de porco, frango, vaca, carneiro e peixe. Resolve comer peixe. Quando o garçom traz seu pedido – lembre-se de que o restaurante é sofisticado – ele vem em uma bandeja de prata, daquelas que tem tampa, e o coloca em sua frente. Antes da tampa ser retirada o que tem na bandeja é porco, frango, vaca, carneiro e peixe simultaneamente, porém quando o garçom retira a tampa lá está seu pedido, peixe. A ideia é que se você tivesse escolhido frango, lá estaria o frango, ou vaca e lá estaria a vaca, mas como você escolhei peixe, ali está o peixe. Você fez uma escolha e é sua observação que “solidifica” em peixe o pedido. Agora imaginemos que existem cinco universos paralelos e em cada universo existe uma versão de você. Neste universo você escolheu o peixe, porém seu outro eu, em outro universo, escolheu porco, então naquele universo, ao retirar a tampa, irá aparecer porco. E assim por diante, com cada opção do menu. Não existe nenhum problema de coerência – daí vem o título do filme – se estes universos não se cruzarem. Mas o que acontece se todos coexistirem simultaneamente? Haveriam alguns paradoxos e você poderia receber porco mesmo tendo escolhido peixe – presumindo-se que o garçom não erre nunca, e o garçom na nossa alegoria é a natureza ou o universo ou as leis do universo.
Podemos pensar de outro modo. A cada instante da sua vida você precisa fazer escolhas. Das oito cores de camisetas para usar hoje, você escolheu uma; dos três sapatos, escolheu um; das ruas para ir ao trabalho, do sabor do suco, de levar guarda-chuva ou não… Enfim, o tempo todo fazemos escolhas. Se apenas este universo existe não há problema algum nisto e as escolhas não feitas simplesmente não existem. Mas se existem universos paralelos, infinitos universos paralelos, teoricamente um para cada escolha, então as coisas ficam bem interessantes. E isto serve para todo o passado e futuro do multiverso. Seus pais fizeram escolhas, seus avós também e assim por diante. Então existem universos onde você nunca existiu. E mesmo que tenha existido, pode ter feito as escolhas “erradas” e estar morto em alguns destes universos.
Isto tudo pode parecer muito confuso, mas na verdade é bem simples. Aqui mais um vídeo de cinco minutos sobre multiverso, é apenas a primeira parte, a quem interessar é só ver os outros.
Não quero me alongar muito, então vamos voltar ao filme. Em Coherence, devido à passagem de um cometa, os diversos universos paralelos são reunidos e então as coisas mais absurdas podem acontecer, inclusive a pior delas: encontrar a si mesmo. O roteiro é bem simples, uma vez que se compreende seus elementos básicos. Existem, talvez, infinitas versões da casa e dois oito amigos jantando e todas estas versões estão conectadas devido ao cometa. É como se uma porta interdimensional estivesse aberta. O mais importante para compreender tudo é prestar muita atenção no nono personagem, o que não está no jantar, o irmão, professor de física, de um dos protagonistas. Ele deixa instruções bem claras: não saiam de casa, em hipótese alguma! Por que? Simples: como achar o caminho de volta? São infinitos universos, então é virtualmente impossível voltar para o seu universo de origem uma vez que tenha saído. Obviamente que nossos queridos personagens passeiam incontáveis vezes fora de casa. Podemos ver o “acaso” de cada universo ou as escolhas dos personagens pelas cores dos bastões de luz (verde, vermelho, azul), pelo objeto escolhido na caixa (urso, porta copo, raquete de ping-pong, lenço, etc.) e pelas próprias atitudes de cada um.
Após o insano quebra-cabeça infinito, o cometa se afasta e tudo volta ao “normal”, a porta se fecha e cada um está aprisionado no último universo em que esteve. O que torna o filme mais interessante ainda é que, além da diversão de tentar entender o roteiro, há uma questão moral muito importante: cuidado com suas escolhas! Em certo momento são mostrados vários universos, várias opções. Em alguns os oito amigos estão tristes, em outro estão brigando e em outro estão felizes. Quais são as melhores decisões? Como viver no universo feliz? Talvez este seja o esforço da vida como um todo.
Coherence é o primeiro filme do diretor e aguardo ansiosamente pelos próximos!
Via: LOGOSKINEMA / IMDB
Coherence é um filme que não apresenta qualquer efeito especial, tem uma trilha sonora mínima e se passa unicamente dentro de uma casa onde oito amigos se reúnem para uma espécie de jantar de confraternização. Todos os atores são desconhecidos das grandes produções, porém fazem um trabalho exemplar, afinal o filme é praticamente um teatro filmado e depende totalmente de suas atuações. Coherence segue uma linha muito semelhante a Primer, de 2004, filme de ficção científica que se passa quase que inteiramente em uma garagem. Não é necessário o gasto de milhões em efeitos especiais se o filme possui um roteiro genial.
Os cortes abruptos e a filmagem com câmera de mão podem parecer um pouco desconfortáveis no começo, mas cumprem bem o papel para a atmosfera do filme. A casa onde a ação se passa teve um cuidado primoroso na iluminação que mantém tudo claro nas cenas mais tranquilas e alegres, escurecendo imperceptivelmente nas cenas mais dramáticas e misteriosas, um dos melhores trabalhos de iluminação natural que vi nos filmes mais recentes, quase inteiramente feito com lâmpadas, abajures, lanternas, velas, etc.
Sem mais demora, vamos à parte mais interessante do filme, seu roteiro. Tudo o que vou apresentar brevemente aqui é dito no próprio filme, mas de modo rápido e resumido, então é difícil, para um leigo no assunto, assimilar de primeira uma quantidade razoável de informações sobre temas complicados. Portanto, quem não quiser MUITOS SPOILERS, sugiro que pare por aqui.
ATENÇÃO!!! SPOILERS!!!
O roteiro de Coherence é um dos mais bem elaborados dentre os filmes recentes. Seu estilo pode lembrar os roteiros de Lynch, Nolan ou Charlie Kaufman, mas tem muito menos surrealismo e muito mais ciência que estes outros. Dois elementos básicos compõem sua estrutura: física quântica e multiverso.Vamos começar pela física quântica e o gato de Schrodinger. Talvez um vídeo deixe as coisas mais claras ou mais confusas:
Ao invés do gato, eu prefiro a analogia do restaurante. Você vai jantar em um restaurante daqueles extremamente caros e sofisticados e recebe o menu. Decide comer alguma carne e repara que no cardápio tem carne de porco, frango, vaca, carneiro e peixe. Resolve comer peixe. Quando o garçom traz seu pedido – lembre-se de que o restaurante é sofisticado – ele vem em uma bandeja de prata, daquelas que tem tampa, e o coloca em sua frente. Antes da tampa ser retirada o que tem na bandeja é porco, frango, vaca, carneiro e peixe simultaneamente, porém quando o garçom retira a tampa lá está seu pedido, peixe. A ideia é que se você tivesse escolhido frango, lá estaria o frango, ou vaca e lá estaria a vaca, mas como você escolhei peixe, ali está o peixe. Você fez uma escolha e é sua observação que “solidifica” em peixe o pedido. Agora imaginemos que existem cinco universos paralelos e em cada universo existe uma versão de você. Neste universo você escolheu o peixe, porém seu outro eu, em outro universo, escolheu porco, então naquele universo, ao retirar a tampa, irá aparecer porco. E assim por diante, com cada opção do menu. Não existe nenhum problema de coerência – daí vem o título do filme – se estes universos não se cruzarem. Mas o que acontece se todos coexistirem simultaneamente? Haveriam alguns paradoxos e você poderia receber porco mesmo tendo escolhido peixe – presumindo-se que o garçom não erre nunca, e o garçom na nossa alegoria é a natureza ou o universo ou as leis do universo.
Podemos pensar de outro modo. A cada instante da sua vida você precisa fazer escolhas. Das oito cores de camisetas para usar hoje, você escolheu uma; dos três sapatos, escolheu um; das ruas para ir ao trabalho, do sabor do suco, de levar guarda-chuva ou não… Enfim, o tempo todo fazemos escolhas. Se apenas este universo existe não há problema algum nisto e as escolhas não feitas simplesmente não existem. Mas se existem universos paralelos, infinitos universos paralelos, teoricamente um para cada escolha, então as coisas ficam bem interessantes. E isto serve para todo o passado e futuro do multiverso. Seus pais fizeram escolhas, seus avós também e assim por diante. Então existem universos onde você nunca existiu. E mesmo que tenha existido, pode ter feito as escolhas “erradas” e estar morto em alguns destes universos.
Isto tudo pode parecer muito confuso, mas na verdade é bem simples. Aqui mais um vídeo de cinco minutos sobre multiverso, é apenas a primeira parte, a quem interessar é só ver os outros.
Após o insano quebra-cabeça infinito, o cometa se afasta e tudo volta ao “normal”, a porta se fecha e cada um está aprisionado no último universo em que esteve. O que torna o filme mais interessante ainda é que, além da diversão de tentar entender o roteiro, há uma questão moral muito importante: cuidado com suas escolhas! Em certo momento são mostrados vários universos, várias opções. Em alguns os oito amigos estão tristes, em outro estão brigando e em outro estão felizes. Quais são as melhores decisões? Como viver no universo feliz? Talvez este seja o esforço da vida como um todo.
Coherence é o primeiro filme do diretor e aguardo ansiosamente pelos próximos!
Via: LOGOSKINEMA / IMDB