Dica de filme: Ex Machina - Inteligência artificial com consciência própria?

“Maria é uma cientista, e a especialidade dela são as cores, ela sabe tudo que tem que saber sobre as cores, toda e qualquer propriedade que as cores podem ter. Mas ela mora em um quarto preto e branco, ela nasceu lá e foi educada lá. Maria só consegue observar o mundo exterior em um monitor preto e branco. E um dia, alguém abre a porta, Maria sai andando e ela vê o céu azul, naquele momento ela aprende uma coisa que todo estudo dela não pode explicar, ela aprende o sentimento de ver as cores.”
-Experimento proposto por Frank Jackson.
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A ampla inteligência artificial é uma conquista de maior desejo da humanidade. Máquinas capazes de pensar e agir através de uma consciência própria e auto-suficiente estão cada vez mais perto de se tornar uma realidade possível – como o Google Brain vem tentando criar em suas pesquisas.

A IA é um assunto vasto e capaz de gerar várias discussões, até mesmo por parte de grandes gênios, como Stephen Hawnking que afirma que a inteligência artificial será capaz de “destruir” o mundo que conhecemos e, possivelmente, iniciar o fim da raça humana.

Suposições a parte, a inteligência artificial realmente pode ser um risco claro à humanidade. A consciência é um dos enigmas da vida, incorporada as máquinas chega a ser inimaginável o impacto de tal feito. Hollywood é famosa por implementar elementos apocalípticos em filmes sobre máquinas que ganham inteligência e tentam dominar a raça humana.

A inteligência artificial sempre foi a grande vilã da história na indústria cinematográfica. Entretanto, Ex-Machina é o típico filme capaz de explorar a verdadeira realidade acerca de uma possível manifestação de IA, de maneira totalmente fora do convencional hollywoodiano.

Como saber se uma máquina realmente possuí inteligência artificial que se assemelhe as capacidades humanas? O que é capaz de provar que uma máquina, repleta de algoritmos que traçam escolhas e realizam análises, pode ser capaz de possuir sua própria consciência? Este é o objetivo de Ex-Machina, explorar discussões.


ATENÇÃO!!! SPOILERS!!!

Caleb é um programador informático que trabalha na Bluebook (o nome foi dado em honra a um trabalho do filósofo Ludwig Wittgenstein), uma empresa que desenvolveu o motor de busca mais popular do Mundo (uma espécie de Google), criada por Nathan (Oscar Isaac), o CEO da mesma, um indivíduo excêntrico e recluso, que vive num território isolado e de difícil acesso. São homens relativamente distintos um do outro, algo exposto de forma paradigmática ao longo do enredo, com Nathan a surgir como uma figura misteriosa, excêntrica, egocêntrica e até algo niilista, pronto a brincar com as possibilidades da ciência ao desenvolver seres com inteligência artificial que julga controlar a seu bel-prazer. Oscar Isaac é fundamental para este personagem barbudo, de cabelo rapado, beberrão e sempre pronto a exercitar-se, adquirir outra complexidade, protagonizando uma cena de dança marcante, numa obra que contrasta muitas das vezes os momentos de aparente acalmia e questionamento com a tensão e alguma extravagância (por vezes até algum humor). Domhnall Gleeson atribui a ponderação e nervosismo certos a Caleb, um indivíduo que venceu um suposto concurso para visitar o seu chefe na mansão isolada do mesmo. A habitação, ou centro de pesquisas como Nathan lhe chama, surge dotada de uma enorme rede de segurança, rodeada de um terreno natural imenso e aberto, recheado de espaços verdes e a presença isoladora das montanhas, contrastando com a artificialidade da mansão. O espaço do "centro de pesquisas" é marcado pela presença de portas que se abrem com um detector, algumas paredes espelhadas que permitem ver para o exterior, ou divisórias metálicas desprovidas de janelas, onde tudo parece ser controlado, algo que é contrastado com os momentos de falta de electricidade onde a tonalidade vermelha predomina e o nervosismo toma conta da narrativa (vale a pena realçar o bom trabalho de fotografia de Rob Hardy, sobretudo nos momentos de maior tensão). Apesar das distinções entre estes dois espaços, quer do interior, quer do exterior da casa (ambos filmados na Noruega), não deixa de ser latente que ambos transmitem uma certa sensação de claustrofobia (por vezes incrementada pela banda sonora), ou não estivéssemos diante de figuras isoladas de tudo e todos, algo que intensifica os possíveis perigos e tensões que possam surgir ao longo do enredo, quer inerentes a Nathan, quer aos seres com inteligência artificial.

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Ao chegar ao território, Caleb logo é colocado em contacto com Nathan, com o primeiro a nunca parecer claramente à vontade com o segundo, não só por ser o seu chefe, mas também pela incapacidade deste em transmitir confiança, com as dúvidas em relação ao personagem interpretado por Oscar Isaac a aumentarem exponencialmente ao longo do desenvolvimento do enredo de "Ex Machina". A razão para a abertura das portas da sua casa, ainda que de forma limitada, já que o cartão de identificação fornecido a Caleb apenas permite a entrada em determinadas divisórias e é assinado um acordo de confidencialidade, é o facto de Nathan pretender efectuar uma espécie de "Teste de Turing" para o primeiro analisar Ava. O teste clássico implicaria que Caleb não soubesse que Ava é um ser que contém inteligência artificial, e que nem a pudesse ver. No entanto, Nathan revela desde logo esta informação de forma a que Caleb esteja ao corrente desta situação, ao longo da semana onde terá de testar Ava e procurar discernir se esta lhe parece ter consciência própria ou não, com o personagem interpretado por Oscar Isaac a manter um secretismo inicial em relação ao futuro da mesma se o teste falhar. Começam desde logo a surgir as célebres dúvidas morais associadas à criação de seres com inteligência artificial, embora Ava, uma androide ainda com parte dos cabos saliente, mãos frágeis e um rosto de uma beleza arrebatadora, exiba uma humanidade e poder de questionamento que nos surpreende, algo que vai ainda gerar a questão se será legítimo poder eliminá-la no caso de não reunir todas as qualidades pretendidas por Nathan. Não é só o poder de questionamento, sedução e aparente sensibilidade de Ava que nos surpreendem ao longo das conversas com Caleb. Também o argumento nos surpreende quando a personagem interpretada por Alicia Vikander começa a colocar questões a Caleb, procurando saber mais sobre o mesmo, aproveitando um corte de energia provocado pela própria para avisar que Nathan não é uma pessoa de confiança, numa medida que parece visar ganhar a confiança do protagonista. Era algo que Caleb já parecia desconfiar, apesar de inicialmente ter ficado entusiasmado com toda aquela realidade apresentada, tendo agora ainda mais uma razão para esses questionamentos. Gera-se uma tensão gradual nos relacionamentos, com Caleb a formar uma afinidade cada vez maior com Ava, apesar de terem quase sempre uma parede envidraçada a separá-los enquanto falam, ao mesmo tempo que exibe um desconforto imenso com as descobertas que efectua sobre as invenções de Nathan. São três figuras bastante distintas, embora Ava seja talvez aquela que é mais inteligente e aproveitada pelo argumento de Alex Garland para levantar as questões mais pertinentes, tais como a moralidade de apagar um ser com inteligência artificial se este não funcionar, quando, supostamente, este passa a estar dotado de vida. Uma das maiores virtudes de "Ex Machina", para além do jogo de constantes dúvidas criado em volta destes personagens, que conduz a uma certa desconfiança no relacionamento entre ambos e até entre eles próprios (veja-se quando Caleb parece duvidar se o próprio também é um robô com inteligência artificial), centra-se exactamente na capacidade do filme em questionar o expectador, criando situações moralmente complexas e reveladoras da competência de Alex Garland na elaboração do argumento e na realização. Os filmes sobre seres com inteligência artificial não são novos, mas Alex Garland cria uma obra capaz de utilizar e jogar com possíveis estereótipos ao mesmo tempo que nos exibe que o perigo encontra-se não só associado às dúvidas sobre estes seres mas também aos próprios humanos. Nathan é um exemplo disso, ao criar e destruir seres artificiais ignorando a sua inteligência, algo representado de forma paradigmática na forma como usa e abusa de Kyoko (Sonoya Mizuno), a sua assistente. A própria relação criada por Ava e Caleb surge recheada de dúvidas, inicialmente deste em relação à personagem interpretada por Alicia Vikander, amenizadas com a forma gradual como esta é capaz de lhe gerar a ideia de que é um ser vivo com consciência, alma, inteligência e sensibilidade, mas também questões geradas pelo espectador em relação a esta figura feminina. O momento em que esta veste roupas de mulher e coloca uma peruca, escondendo as suas partes robóticas, deixam-na praticamente como se fosse um ser humano comum, com Alicia Vikander a surpreender-nos pelas transformações que incute na personagem, sempre sem deixar de lado alguns maneirismos que indicam que esta não é uma mulher.

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Aos poucos descobrimos que Ava é questionadora e manipuladora, que pode sentir prazer sexual e conta com uma inteligência muito acima da média, com o último terço a deixar-nos a certeza que podemos a estar a ser tão manipulados como Caleb. Diga-se que este começa por apresentar um entusiasmo em relação a este feito de Nathan, até aos poucos expor algumas dúvidas em relação às verdadeiras razões para ter sido chamado para o local. As relações entre este trio surpreendem-nos, bem como as dúvidas que estas são capazes de nos gerar ao longo desta obra cinematográfica cujo título remete para a expressão latina "Deus ex machina", algo como "Deus surgido das máquinas". Em "Ex Machina", um cientista decide brincar aos Deuses criadores e desenvolver seres com inteligência artificial capazes de evidenciarem a sua genialidade como cientista mas também a sua falta de sensibilidade para com aqueles que o rodeiam. É um indivíduo recluso das suas vontades e prazeres, algo hedonista, que se embebeda quer esteja sozinho quer com companhia, tendo no exercício físico uma forma de expurgar as toxinas e a violência que por vezes parece reprimir. A chamada de Caleb parece ser acima de tudo um devaneio pessoal de Nathan, tendo em vista a este exibir a sua genialidade como criador, encontrando-se longe de ser uma atitude inteligente ou altruísta, ou até para ultrapassar a solidão, com o personagem interpretado por Oscar Isaac a procurar constantemente ignorar as perguntas mais melindrosas efectuadas pelo seu interlocutor, a ponto de parecer muitas das vezes pouco interessado no mesmo. Este constante ignorar das questões melindrosas é revelador da personalidade algo fria deste personagem, pouco preocupado em relação à opinião dos outros, vivendo numa realidade praticamente à parte de tudo e todos, encarando Caleb quase como uma cobaia. No entanto, também não deixa de parecer querer desfrutar de alguns momentos de alguma leveza com Caleb, com a relação entre estes dois a ser bastante ambígua, com o talento dos actores a sobressair, bem como a argúcia do argumento. Alex Garland conduz a narrativa com engenho e pulso firme, capaz de transportar o argumento que criou com eficácia para o grande ecrã, contando ainda com um conjunto impressionante de valores de produção que permitem ultrapassar com engenho as limitações orçamentais, sempre sem estar dependente de imensos efeitos especiais. Veja-se o design dos cenários interiores, onde sobressai não só o quarto com uma estética moderna e fria onde o protagonista fica instalado, mas também a sala de vigilância de Caleb, onde este pode ver o que é gravado através das câmaras de segurança. A sala encontra-se recheada de post-its na parede, bem como de um conjunto de monitores, remetendo para o estilo controlador de Nathan. É nestes monitores que este assiste às conversas de teste entre Caleb e Ava, com estes dois últimos a saberem que muitas das vezes encontram-se a ser vigiados. Não falta ainda uma sala com um telefone (que Caleb não está autorizado a utilizar), um espaço onde se encontra exposto um quadro de Jackson Pollock, um pintor associado ao expressionismo abstrato que é citado por Nathan. A referência a Pollock não é colocada ao acaso, nem a representação do quadro. Veja-se este comentário de Jackson Pollock sobre o seu trabalho: "When I am in my painting, I'm not aware of what I'm doing. It is only after a sort of 'get acquainted' period that I see what I have been about. I have no fear of making changes, destroying the image, etc., because the painting has a life of its own. I try to let it come through. It is only when I lose contact with the painting that the result is a mess". Faz recordar alguém? Nathan não tem problemas em efectuar alterações nos seres que cria, em destruir os mesmos, com o maior problema deste a provavelmente surgir quando perder contacto com a sua criação.

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Se Nathan parece ter deixado os valores morais na "barriga da mãe", já Caleb surge praticamente como o nosso alter-ego, como o indivíduo que fica surpreendido e na dúvida em relação àquilo que está a descobrir, formando uma admiração por Ava que parece, ou melhor, certamente, também remete para o desejo sexual em relação a esta figura que apresenta algum charme. Ava é um mistério, pelo menos durante o início e o desenvolvimento do filme. É um ser com inteligência artificial que inverte as peças do tabuleiro de xadrez ao começar a estudar Caleb, o primeiro ser humano com quem contacta para além de Nathan, parecendo dotado de sentimentos e pensamentos humanos a ponto de fazê-lo esquecer-se que está a lidar com uma máquina, ao mesmo tempo que nos deixa na dúvida em relação aos seus reais objectivos, embora saibamos que nos filmes estas figuras geralmente não são confiáveis. Diga-se que não é apenas Ava que nos vai levantar dúvidas, com "Ex-Machina" a despertar questões sobre a inteligência artificial, sobre as relações humanas, sobre o uso dado ao histórico das pesquisas que efectuamos nos motores de busca, sobre os avanços da ciência, remetendo até (um pouco) para "Never Let Me Go", um trabalho que contou com o argumento adaptado de Alex Garland. Em "Never Let Me Go" ficámos diante de um grupo de clones que foram criados para doar órgãos a outros seres humanos, quando chegavam à idade adulta, uma situação moralmente questionável. No caso de "Ex Machina" também nos acabamos a questionar não só sobre a própria criação de seres com inteligência artificial (no caso dessa possibilidade ser concretizada) mas também se a destruição dos mesmos pode ser moralmente justificada depois de terem sido criados, tal como poderá ainda ser colocada em causa a finalidade do seu fabrico. Veja-se que Nathan criou um ser com inteligência artificial feminino, dotado de sexualidade e poder de sedução, algo que até pode ser considerado misógino, sobretudo se tivermos em atenção a utilidade que este dá à sua assistente. Claro que Ava surge bem mais independente e capaz de demonstrar que a sua inteligência vai muito mais além de conhecer o modo de agir humano mas também de ter a frieza de tomar as suas próprias opções. O nome remete para Eva, tal com o personagem interpretado por Oscar Isaac por vezes nos parece uma figura moderna do Doutor Victor Frankenstein pronto a dar vida a uma criatura, enquanto Caleb lida com aquela que é o suposto ideal de mulher dos seus sonhos, com o trio de protagonistas a brilhar sob a batuta de Alex Garland. Dotado de um argumento inteligente, um trio de protagonistas de alto nível e uma realização segura de Alex Garland, "Ex Machina" levanta questões pertinentes e responde às mesmas para logo de seguida levantar novas dúvidas até surpreender-nos com o seu final, onde o seu título faz ainda mais sentido se for associado à expressão latina "Deus ex machina". É um pouco cliché dizer isto, embora em alguns momentos, tal como este, torne-se complicado não utilizar o mesmo, mas é praticamente impossível não realçar que Alex Garland passou a ser um nome a seguir com atenção não apenas como argumentista, mas também como cineasta.

Título original: "Ex Machina".
Realizador: Alex Garland.
Argumento: Alex Garland.
Elenco: Alicia Vikander, Oscar Isaac, Domhnall Gleeson, Sonoya Mizuno.



Fontes: OVÉRTICE / OSUPERNERD / RICK'S CINEMA

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